UM FRANCISCO DE NOSSO TEMPO. Inicia no Peru o processo de beatificação do italiano Andrea Aziani. Suas últimas palavras do Cântico dos cânticos: «O amor é mais forte do que a morte»

Andrea Aziani com o autor do artigo, Massimo Borghesi, em 2007, em Lima
Andrea Aziani com o autor do artigo, Massimo Borghesi, em 2007, em Lima

No dia 2 de fevereiro, durante a missa que comemorava o 19° aniversário da diocese de Carabayllo na cidade de Lima, no Peru, o bispo Lino Panizza anunciou a abertura da causa de beatificação de Andrea Aziani (1953-2008). Em Lima, Andrea tinha chegado em 1989, por convite de Dom Luigi Giussani, a fim de promover uma presença cristã no ambiente universitário. Foi ali que o encontrei, uma primeira vez, em novembro de 1992 por ocasião do IV Congresso Mundial de Filosofia Cristã para o qual eu tinha sido convidado como conferencista. O convite era mérito dele. Andrea me conhecia por meio das publicações, sobretudo por meio de meus artigos publicados no semanário “Il Sabato”. Assim, fiquei hospedado, por uma semana, no apartamento que ele dividia com os amigos Giancorrado Peluso (Dado) e Gianbattista Bolis (Tista). Quem guiava então aquela que era uma comunidade vocacional era o Pe. Joahn Leuridan Huys, decano da Faculdade de Ciências da Comunicação, Turismo y Psicologia da Universidade de San Martín de Porres, na qual lecionava também Andrea. Leuridan era uma pessoa inteligente, muito ligado a um modelo ocidental, afetivamente distante do ambiente peruano. Na frente dele me tocava, nas conversas que tivemos, a humildade de Andrea, a quem certamente não faziam falta perspicácia e inteligência. Sua discrição me parecia, no momento, desarmante. Só em seguida eu viria a saber que a mesma correspondia a uma exigência maior: a de permitir um testemunho cristão dentro da Faculdade dirigida por Leuridan. Anos mais tarde, o sodalício, diante das objetivas dificuldades da coabitação, iria dissolver-se. O Congresso de Filosofia Cristã foi a ocasião que me permitiu conhecer e de tornar-me amigo com alguns dos protagonistas do renascimento intelectual católico latino-americano. Entre eles, Alberto Methol Ferré, o intelectual uruguaio muito estimado pelo cardeal Bergoglio, conhecido na Itália pelo seu livro-entrevista aos cuidados de Alver Metalli: O papa e o filósofo (Cantagalli 2014). E ainda Pedro Morandé, decano da faculdade de Ciências sociais da Pontifícia Universidade católica do Chile, e Pedro Aníbal Fornari docente de filosofia na Universidade de Santa Fé, na Argentina. O intermediário era Andrea, sempre presente naqueles dias ricos de intercâmbios e de avaliações. Conservo ainda as fotos da época: Methol, Morandé, Fornari e Andrea em frente à costa do Pacífico. Publiquei algumas delas na página do Facebook dedicada a Andrea Aziani. Nelas Andrea aparece elegante, de terno e gravata, um vestuário insólito para ele. Daqueles dias ainda lembro a visita juntos ao Museu arqueológico de Lima, rico em tesouros do império Inca.

A viagem de ’92 foi a premissa da viagem sucessiva, após quinze anos, em novembro de 2007. Não podia certamente imaginar que lhe restavam poucos meses de vida. Nos anos precedentes, Andrea, depois de ter ensinado filosofia, ética, epistemologia, doutrina social da Igreja em várias universidades, a pedido do bispo Dom Lino Panizza, contribui à fundação da Universidade “Sedes Sapientiae” (UCSS). A escolha do local era significativa: já não no meio dos bairros elegantes, da alta burguesia, da Lima espanhola, mas em um contexto popular com a finalidade de promover a elevação social dos menos favorecidos. Entre os estudantes eram muitos os trabalhadores. Andrea veio nos buscar no aeroporto, a mim e a minha esposa Carmen, na quarta-feira, dia 31 de outubro. Estávamos cansados, chegando de um tour chileno, em Santiago, cheio de conferências e de encontros. No trajeto do aeroporto à cidade o caminho “breve” escolhido pelo motorista passava, através de estradas de terra, margeando as imensas favelas de um submundo indescritível para o olhar europeu. Andrea estava habituado, nós estávamos calados. Antes de chegar ao hotel, com grande delicadeza, nos levou a um belo restaurante cujo terraço oferecia uma vista do Pacífico. Era o seu modo de dar boas-vindas. Eu o olhava: estava envelhecido, de rosto cavado e mais magro do que o habitual. O seu ser “sombra” se mostrava agora também no corpo. O que não tinha mudado era a chama interior, o olhar suave e intenso que abraçava e fazia você sentir-se em casa. Nos dias seguintes iríamos conhecer os seus amigos de apartamento. Além do Tista – Dado tinha voltado para a Itália – havia Igor, Paulo, Guido. Na casa deles a hospitalidade era real, respirava-se um clima de verdadeira amizade, de profunda serenidade. O clima meio tenso do outro apartamento, o de ’92, era uma lembrança do passado. Na casa, Andrea, antes de ir à universidade, estava pregado ao computador desde seis horas da manhã. Apesar da conexão tremendamente lenta, respondia, com paciência, aos muitos que lhe pediam os mais variados conselhos. Ele era assim, incansável do amanhecer ao pôr do sol. Esta mobilidade, porém, não era vivida com ânsia, mas com um tipo de leveza, de consciente serviço ao próximo que vetava a si mesmo toda ostentação. Humilde, discreto, apaixonado, atento, essencial nas necessidades, sempre pronto a fazer-se tudo para todos, era semelhante a um Francisco do nosso tempo. Às virtudes deve-se acrescer a sua profunda paixão intelectual, a sua curiosidade ligada ao páthos educativo de comunicar adequadamente o verdadeiro aos seus estudantes. O conteúdo da fé cristã podia demonstrar a sua correspondência ao humano só dando razão de tudo, sem censurar nada. Era este o motivo de eu encontrar-me ali, uma segunda vez em Lima. Em 2005 eu havia publicado dois volumes, o primeiro com o título O sujeito ausente. Educação escola entre memória e niilismo; o segundo sobre Secularização e niilismo. Cristianismo e cultura contemporânea. Ambos tinham sido traduzidos em espanhol, em 2005 e em 2007, pela Editora Encuentro de Madri. Andrea tinha-os lido com grande atenção a ponto de usá-los como referências para as suas aulas. Daí a ideia de chamar-me para eu fazer umas conferências sobre o tema da educação, o tema do meu volume. O e-mail com a qual me convidava era de dezembro de 2006. Escrevia o seguinte:

Caríssimo Mássimo, há muitíssimo tempo eu desejava fazer novamente contato contigo…e agora a ocasião chegou – imprevista! – com a vinda a Lima de Pedro Morandé, por ocasião do nosso “Happening” e de uma conferência dele na Universidade Católica “Sedes Sapientiae”. Foi justamente Morandé quem me deu a sua mail. Como vai? Lembramos, nestes dias, a sua vinda a Lima para aquele “famoso” Congresso de filosofia cristã. Lembra? Eu lembro também aquelas “mesquinhas” e “ridículas” críticas dos vários …. às suas – justamente – guardinianas teses. Mas em todos estes anos – talvez você não vá acreditar – procurei de todas as maneiras “seguir-te”. Inicialmente, através da “30 Dias”, depois através de artigos diversos publicados na internet, e também através de suas visitas à Espanha (pelas quais concluo que você fala perfeitamente Espanhol…!) e, ultimamente, comprei, li, e fiz uma full immersion no seu ESPLÊNDIDO O sujeito ausente, já traduzido em espanhol junto com o outro sobre secularização lembrado por Morandé na sua resenha. Estou (estamos) usando-o em todos os cardápios!!!! O seu Sujeito ausente…de verdade… acredite!!! Eu estou fazendo, de fato, com o mesmo, o curso de FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO. Mas também na antropologia toda a parte final (realismo, preconceito, experiência) ESPLÊNDIDO! Não sei como lhe agradecer!!!!

Mas vamos ao ponto! …agora! Você já deve ter entendido que nesta altura, ao invés de citar os seus textos – a propósito ou a despropósito (no nosso caso!) estaríamos mais contentes de ter o autor…em carne e osso! Não lhe parece? […]. Enfim, fiquemos em contato! Sou feliz por ter reencontrado um “velho” Amigo e “jovem” mestre!

OBRIGADO!!!!! Até breve, faça-nos saber. Andrea.

Diante de uma carta tão repleta de estima e de afeto era impossível recusar. Conservo ainda os e-mails nos quais ele se preocupava para tornar a nossa viagem o mais confortável possível, a ponto de organizar uma esplêndida etapa em Cuzco, a antiga capital Inca, com um itinerário imperdível a Machu Picchu. Porque Andrea era feito assim: não se limitava à forma ou aos resultados, mas era atento às pessoas, à humanidade delas. Não as abandonava, acompanhava-as com o olhar e com os amigos que colocava ao seu lado. Entre estes estava o bispo Lino Panizza. Lembro seu jantar hospitaleiro em uma casa modesta na parte popular de Lima. Era evidente a grande estima, retribuída, que nutria por Andrea. Os últimos dias foram de fogo, entre conferências e encontros. Os que mais lhe estavam a peito eram sobre O sujeito ausente. Educação e Escola entre niilismo e memória. O local, apinhado de forma incrível, era o salão nobre de um colégio perto da UCSS. As aulas ocorriam à noite para permitir a participação dos estudantes trabalhadores da Faculdade de Educação. Lembro delas com uma experiência única: o silêncio, a atenção, e depois, a fila interminável, no final, de todos aqueles que agradeciam por terem se sentido tocados em sua humanidade. Comigo, à mesa, estavam o Pe. Giovanni Paccosi e a professora Giuliana Contini. Andrea estava nos bastidores, cheio de contentamento por aquele momento bem sucedido. Vivia por aqueles jovens, era o seu professor com uma vocação inata a educar. Como cristão sentia o ensino como uma transmissão de vida, um testemunho da beleza de Cristo que brilhava em tudo o que era grande, humano. Uma inteligência sutil e um coração ardente, apaixonado por Cristo e pelo homem, eis quem era Andrea. Em novembro de 2007 tive a maneira de intuir isso de perto. Sempre pensei que, no fundo, nosso conhecimento recíproco foi de poucos dias, nem duas semanas entre 1992 e 2007, entretanto eu sentia que eu tinha na minha frente um grande amigo. No tempo que transcorremos juntos falou-me de si, da sua família, de suas raízes hebraicas pelo lado da mãe, de seu parentesco com Emanuel Samek Ludovici, jovem esperança da Universidade Católica de Milão, morto prematuramente em 1981. Andrea estava na encruzilhada de mundos, hebreu-cristão, italiano-peruano, intelectual-popular. Nesta encruzilhada se colocava o seu peculiar ser aberto a todos, sem discriminações, na ótica da gratuidade que não pede recompensas. Os “seus” estudantes sentiam isto, percebiam ter um docente que era, ao mesmo tempo, mestre de vida, pai e companheiro de viagem. Uma daquelas pessoas das quais não se esquece e cuja recordação, depois de anos, associa-se à comoção.

No sábado dia 10 de novembro, visitamos, junto com Carmen, a Igreja de S. Francisco guiados por um arquiteto. Depois Andrea nos levou ao “Eau vive” e, à noite, ainda ao restaurante, junto com Igor. Era a sua hospitalidade, o seu modo de demonstrar a gratidão. No dia seguinte, domingo, a partida. Na despedida me deu dois santinhos do Senór de los Milagros, a quem era apegado. No verso de um escrevera: «Obrigado. Até breve de verdade, por tudo. A.». No outro: «Obrigado. Até breve ou em Roma ou em Lima. Obrigado. A.».

A gratidão, o ser gratos, a consciência de que o cristianismo é, do início ao fim, “graça”, era o seu modo de ser. Era a última vez que eu o via e não sabia. O último e-mail que me enviou é do dia 3 de junho de 2008. Nele, mais uma vez, me saúda do seu jeito: «Obrigadoooo amigoooo A!». Um modo gritado, futurista, para lhe tornar presente um afeto fraterno. Andrea morreu subitamente aos 30 de julho de 2008. O coração generoso de um homem, incansável em doar a sua vida aos outros, cessou de bater. Foi o amigo Alver Metalli, da Argentina, quem me deu a triste notícia. Anos mais tarde, em um artigo publicado na Passos, Andrea Aziani um homem consumido pelo desejo de Cristo, escrito por Dado Peluso, eu li que:

Mirna, uma estudante lembrou da seguinte maneira a última aula na Universidade Católica Sedes Sapientiae de Lima. «Parece ontem o último dia de aula de Metafisica com o meu mestre Andrea Aziani. Muitas foram as coisas fora do comum que ele disse, mas o que chamou mais a minha atenção foi a paixão com que explicou o tema da Beleza. “Num mundo sem beleza – escreve Von Balthasar – até o bem perdeu a sua força de atração… o homem fica perplexo frente a isso e se pergunta por que não deva antes preferir o mal”. Um mundo sem beleza é uma Waste Land (T. S. Eliot), uma “terra desolada” habitada pelo desespero, é a meia-noite do Niilismo. A beleza reside em um amor que, como recita o Cântico dos Cânticos “é forte como a morte”, um amor capaz de desafiar a morte, o nada, o ódio e tudo o que torna a vida perdida e miserável. Não era a beleza estética e banal à qual ele se referia, era a beleza da verdade, do infinito». O estudante que falou no funeral relatou que Andrea havia terminado a sua última aula dizendo: «Lembrem-se sempre: o amor é mais forte do que a morte».

Quando eu li estes testemunhos não pude reprimir um nó na garganta. Andrea, na sua última aula, havia lembrado, ao pé da letra, fragmentos de páginas do meu volume O sujeito ausente. Eram os mesmos (páginas 117 e 63) nos quais eu tinha colocado parte de mim, a que protesta contra a morte e, comovida pela cruz de Cristo, aguarda e espera na vitória sobre o nada. Que Andrea, um instante antes de morrer, recitasse a frase do Cântico dos cânticos: «Forte come a morte é o amor» acrescentando um “mais”: «O amor é mais forte do que a morte», era o ponto que nos unia e que nos une agora, quando ele, não mais presente, é mais que nunca presente. Naquela frase está o seu testamento, o seu testemunho a Jesus como amor ao mundo, aos pequenos que fazia sentirem-se importantes, aos seus estudantes que guardava, um a um, no seu grande coração.

Tradução do italiano: Giovanni Vecchio 

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