A IGREJA BRASILEIRA E LULA. Duas linhas de pensamento se confrontam: quem considera a condenação um ato político, quem sustenta que as decisões judiciais devam ser respeitadas

Lula com o cardeal emérito Cláudio Hummes
Lula com o cardeal emérito Cláudio Hummes

Nas estradas de asfalto das cidades brasileiras, mas também nas cibernéticas das redes sociais, a discussão continua incandescente. Não passa uma semana, nos últimos meses, em que uma parte da sociedade brasileira não tenha se manifestado a favor ou contra Luiz Inácio Lula da Silva no ritmo das revelações ou das decisões judiciais da Operação Lava-Jato. O ápice aconteceu no dia 24 de janeiro com a condenação do ex-presidente que governou o Brasil por oito anos, entre 2003 e 2010, e que gostaria de fazê-lo novamente. Com a justiça permitindo, porque Lula, como se sabe, é acusado de receber um apartamento tríplex, na cidade litorânea do Guarujá, no estado de São Paulo, como propina em troca de contratos da construtora OAS com a sociedade petrolífera estatal Petrobras. Além disso, a sentença condenatória recentemente emitida, que inicialmente previa nove anos e meio, foi para 12 anos e um mês de prisão. Ainda cabe um último recurso, que a parte condenada pode invocar.

Para a Igreja brasileira não foram meses tranquilos. Os bispos estão divididos entre si quanto ao juízo a ser dado sobre a tempestuosa contingência política, assim como a sociedade. E não poderia ser diferente. Quão profunda é a divisão – os argentinos a chamariam de grietas (rachaduras) -, onde as escalas ficam pendentes quando se trata de determinar as opiniões da maioria na poderosa Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e que é praticamente impossível estabelecer com as ferramentas da estatística. O que se pode notar é que os favoráveis a Lula são mais ativos na hierarquia brasileira. A prova é que imediatamente após a sentença condenatória, Dom Angélico Bernardino, bispo emérito de Blumenau, no estado de Santa Catarina, deu uma série de entrevistas a jornais brasileiros apoiando sem hesitação que Lula é vítima de perseguição política e que aquilo que estão fazendo é uma “afronta à democracia”. Há muitos que querem completar com Lula o golpe já iniciado anteriormente argumentou o bispo, emérito desde 2009, em uma entrevista ao influente jornal Folha de S.Paulo, referindo-se ao processo político de impeachment que antes de Lula colocou para fora de jogo Dilma Rousseff. Todo o raciocínio do prelado, que foi delegado pelo Brasil da Conferência de Aparecida, se funda na sua convicção de que não há evidências contra Lula. “As provas não foram apresentadas, não foram com clarividência. Não basta acusar alguém. É preciso realmente apresentar provas consistentes e depois permitir ampla defesa no julgamento”. O bispo critica, em suma, a falta de imparcialidade no processo: “É preciso que trabalhemos sem cessar para que os poderes legislativo, executivo e judiciário mostrem um comportamento ético e deem provas de que estejam efetivamente a serviço da verdade e do bem comum”. Dom Angélico vê uma saída das águas poluídas em que se encontra a política brasileira, permitindo a Lula de se candidatar nas próximas eleições presidenciais e deixando ao povo a última palavra: “A possibilidade de o Lula disputar a eleição pode acalmar muito os ânimos”, reitera. Dom Luiz Carlos Eccel, também ele emérito, bispo de Caçador, no estado de Santa Catarina, concorda no substancial, com dom Angélico Bernardino. Em uma entrevista ao jornal Gazeta do Povo, afirmou que “Lula é uma causa a ser defendida. Se querem condená-lo por enriquecimento ilícito, que encontrem contas em seu nome, documentos escrituras e dados concretos”. E se disse “decepcionado” e “desgostoso” com políticos e instituições do próprio país.

Carlos Moura, secretário-executivo da Comissão Brasileira Justiça e Paz do episcopado, divulgou uma nota em que critica a sentença que condenou Lula e pede revisão: “a condenação deve ser reformada para que o país não pratique e dissemine por todo o território barbáries judiciais, sem provas cabais”. “A hipótese de impedir o ex-presidente da república, que deixou o governo com o maior índice de aprovação da história e é apontado nas pesquisas de opinião como o favorito, interfere com o direito soberano da população de escolher o seu próprio governante e seu respectivo programa de governo”.

Nos mesmos dias do julgamento que condenou Lula, ocorreu em Londrina o 14º Encontro Intereclesial das Comunidades de Base. Os trabalhos, que envolveram cerca de 3 mil participantes entre bispos, religiosos, consultores e operários das comunidades de todo o Brasil e da América Latina, foram suspensos e foi feito um minuto de silêncio “pela democracia” logo que a sentença foi divulgada. No salão principal do encontro foi fixada uma faixa com os dizeres: “Eleição sem Lula é fraude”, que permaneceu estendida até o final dos trabalhos.

Se há aqueles que estão de forma inequívoca com o ex-sindicalista arrastado para o banco dos réus e quase no fim da linha como um político com pretensões eleitorais, outros bispos da CNBB não seguem a mesma linha. Com tons e acentos diversos, acusam o histórico líder do Partido dos Trabalhadores de ter politizado irremediavelmente as instituições. Dom Orani Tempesta, cardeal do Rio de Janeiro, reitera que quem deve julgar Lula são os juízes, e “as decisões deles devem ser respeitadas”. Para o cardeal, já anfitrião da primeira viagem papal à América Latina, o destino do ex-presidente pode ser dito estar escrito na constituição. “Não é o número dos votos de quem foi eleito ou se ele fez coisas positivas ao país que determina se um colegiado de juízes pode ou não pode processar o eleito. São os fatos e as acusações. E aos juízes cabe julgar”. Dom Odilo Scherer, cardeal de São Paulo, acredita que o momento em que o Brasil está atravessando não é tão ruim como vem sendo pintado: “Atravessamos um período difícil, em que apareceram muitos fatos que estavam encobertos no passado e que, felizmente, vão sendo desvendados. Só assim é possível corrigir certas distorções na vida social, na vida econômica, na vida pública”. Para Scherer, também esse momento traz consigo uma esperança no futuro. “Talvez, diante do volume de malfeitos, poderíamos ser levados ao desânimo, ao abatimento, mas quando se começa a encarar a realidade, a desvendar e a tomar as medidas consequentes para sanear uma situação que não está bem, já estamos na boa direção”, afirmou. Na mesma onda parece seguir Dom Jaime Splenger, arcebispo de Porto Alegre, que já havia manifestado o seu pensamento, em entrevista ao Vatican News, antes da condenação de Lula ser ratificada “Se há elementos que realmente comprometem a atuação de quem era presidente da República e que, por isso, mereçam uma condenação, que assim se faça. A justiça vale para todos”. Dom Sérgio da Rocha, presidente da CNBB e cardeal de Brasília, busca um equilíbrio entre as duas linhas de pensamento: “As pessoas têm o direito à sua defesa em quaisquer situações, e isso é critério de justiça verdadeira, em todos os sentidos e em todas as instâncias”. E pondera: “Mas claro que temos que estar atentos para respeitar a ordem constitucional, por isso, a vigilância da própria Igreja sobre esse momento”.

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